‘Quadro Temporal’; Jorge Fernandes, 2011.
Oito conversas com oito artistas do Núcleo de Arte sobre o ser artista em Maputo.
Malangatana é o melhor exemplo do que um artista pode ser para uma sociedade. Ao mesmo tempo ele é o pior exemplo do que um artista provalvemente é para a sociedade. Ele não é so um grande artista em termos de conhecimentos, valor das obras e influência cultural, Malangatana é um dos criadores da identidade Moçambicana. Sem exagerar podemos dizer que ele é um herói para o povo, pessoalmente não conheço nenhum Moçambicano que não conhece ‘o mestre’. É por isto tudo que vou utilizar a mitologia que ele é para começar a viagem no palco chamado Moçambique.
Existe uma diferença entre a realidade e a imagem que as pessoas tem do artista. Se ‘o mestre’ é a norma, pode-se dizer que um artista faz quadros de pintura, esculturas e desenhos figurativos de uma maneira que o público pode entender o que ‘o mestre’ quer expressar ou representar. Nesta forma a arte tem um contéudo que deve ser transmitido ao público. A arte então é uma língua de representação de ideias pré-definidas. A mitologia de um artista que representa o subconsciente do povo cabe neste sistema. Se ‘o mestre’ não é a norma, pode se dizer que arte não tem fronteiras. Porque tudo que o ser humano faz pode-se utilizar na arte, e até quando esta actividade é bem feita as pessoas dizem que é uma arte. Se ‘o mestre’ não é a norma o artista não tem responsabilidade de representar ideias fixas ao público. A sua posição na sociedade deve ser criado por ele próprio.
Uma mitologia pode ter uma vida que não tem nada a ver com a verdade atrás dela, e é assim como deve ser. Chegou um ponto que Malangatana já não era o nome de uma pessoa mas uma marca de um local. A propriedade já não era dele e aqueles que compraram obras, o público agarrou-se a mitologia e não a largou. Chegou o ponto que se sabia que ele podia estar vivo ou morto; Malangatana e Moçambique nunca mais iriam-se separar. Entre a mitologia e a verdade há um espaço indefinido. Um espaço mental público que é a terra de governos, empresas, consumidores, jornalistas e artistas.
Aqueles que dizem que ‘Ele’ não é um bom artista, que ele não desenvolveu, que ele foi criado e não se criou, que ele teve sorte, estes não têm medo da opinião pública. Até posso entender que um Moçambicano sente-se ofendido por esta afirmação. Ele é um dos pais da cultura Moçambicana conteporânea. Este país, que ainda não passou quarenta anos, foi descolonizado e recolonizado em sentido de local e na mente. Esta situação foi sempre precária e continua ser. Ser daqui significa ter uma relação pessoal com os símbolos, a história, as mitologias, o governo e os habitantes da terra. Sempre é mais fácil aceitar a opinião geral do que fazer crítica, mas isso não significa que esse comportamento seja correcto ou bom para a sociedade. As vezes, talvez sempre, precisamos daqueles que não tem medo de dizer as coisas. A opinião pública pode ser o pior inimigo do povo. Medo pode ser o pior inimigo de ser humano.
Malangatana é uma boa marca, no sentido que não faz ou diz mal de ninguém. Por favor perdoa-me que eu não estou a falar dele como se fosse uma pessoa, mas isto é a realidade da minha relação com este nome. Não falto respeito, mas no contexto deste texto o nome do ‘mestre’ é um conceito. Na história mundial há muitos exemplos de artistas que representam a cultura da sua localidade. Provalvemente porque o local precisava das suas obras naquele momento. Então a pergunta certa para este texto deve ser: quais são as necessidades de Moçambique?
Hoje em dia este país esta ser explorado por forças abstractas, invisíveis e persistentes. Forças que não pensam no que é melhor para o povo porque não precisam. Forças que destabilizam o desenvolvimento da sociedade porque é o interesse deles. Este é o normal do sistema monetário num contexto de um país pobre, pós-colonial, cheio de recursos humanos e naturais. A função do artista na sociedade é criar recursos mentais-creativos num contexto intelectual, commercial e politico. Eu não acredito na neutralidade de arte. Na minha opinião o artista é para a sociedade o que um sonho é pra um indivíduo. A imaginação de um artista tem muita ligação com a imaginação social.
Global + Local = Glocal
Em todo mundo o que é local está a ser deslocalizado por influências globais. Estamos no ponto em que existem as mesmas coisas em todo mundo mas com um estilo local. A nova palavra para esta situação é glocal: com uma perna em Moçambique (local) e a outra no globo (global).
Culturas indígenas geralmente são vítimas destes processos. Na prática significa que uma versão híbrida se forma, a cultura morre ou oculta-se. Para não deixar estas culturas morrerem a sociedade precisa de artistas. Eles sabem valorizar as partes antigas, as partes das raízes, e complementam com as partes modernas. Manter as culturas sem misturar com o glocal parece impossível. É o artista que tem de inventar possibilidades novas. Mas os processos geo-políticos e geo-económicos contemporâneos marginalizam o independente em favor do oligárquico. Especialmente as tecnologias de comunicação, segurança e transporte paracem importantes para a sociedade glocal. Realmente, o que é um ser humano sem tecnologia hoje em dia? Não é possivel viver uma vida moderna sem tecnologia. Aqueles que não têm acesso a essas tecnologias são geralmente excluídos e explorados. Estes processos são importantes para um país como Moçambique.
Muitos artistas são pobres, isto tem a ver com o facto de arte ser um produto de luxo, talvez seja o produto mais luxuoso que existe. O mercado de arte é pequeno e depende das classes alta e média para sua existência. Maputo é um exemplo de um mercado de arte que vende aquilo que os clientes pedem, como todos os outros mercados. Mas esta idea, este sistema, já não é do século vinte e um. Porque neste sistema so vem a relação entre o cliente e o artista. O poder da arte para um local é um que não se deixa expressar em valores. Se um local é famoso porque tem uma cultura vibrante, única e poderosa, este local vai fomentar o turismo. As pessoas podem até não comprar uma obra, mas querem ver a cultura. A arte pode fomentar curiosidade a um local sem ganhar disso, mas o local terá vantagem da situação.
Exemplares deste processo são plenum. Hoje em dia o ‘Biennale’ ou festival de arte pode ser um empurrão para a economia local. Os maiores exemplos são o Documenta em Kassel, o Biennale de Venezia e o Frieze Art Fair em Londres e Nova Iorque. Em Maputo há o MuvArte, claro que não podemos comparar os outros exemplos gigantes com o nosso local, mas isso só significa que há muito espaço para explorar. Em todo mundo ter um biennale ou festival de arte significa que o local é glocal. Uma cidade que se respeita e quer um prestígio de um local metropólito tem de ter algo para apresentar ao Mundo.
Naturalmente estes fenómenos são consequências da globalização e urbanização. Todos os processos de que estou a escrever falam da sincronização entre um glocal económico com um glocal cultural-político. O que Moçambique necessita são artistas que sabem lidar com estes processos. Aqui chegámos num tema crucial da posição do artista em Maputo.
Nestes tempos a metade do povo global vive nas cidades. Em 2050 serão setenta procento. A cidade é um espaço de identidades políticas, económicas e culturais que se estendem do local pra o global. Quanto mais o tempo passa, quanto mais as cidades do mundo formam uma rede que se separam dos locais rurais. No futuro e no momento contemporâneo existem três divisões do público neste contexto: a primeira é a rede urbana das classes média e alta, a segunda são as ‘cidades invisíveis’ dos pobres urbanos sem acesso ao mundo glocal, a terceira são as zonas rurais que vão perdendo importâncias política, económica e cultural. Estas zonas, a segunda e a terceira, vão-se desenvolvendo como locais com um baixo nível de glocalização comparando com a Metrópole.
Estas divisões do povo não ajudam manter uma identidade comum. Para criar a identidade nacional a política precisa de arte. A Estátua do Samora na Praça da Indepedência, os murais na Praça dos Heróis, a própria bandeira, as reportagens do jornal falando da Maria da Luz Guebuza, as publicidades da Mcel na televisão falando sobre “a nossa Moçambicanidade”, o quadro do Malangatana no Museu Nacional de Arte, a página da Frelimo no Facebook, sem estas e muitas outras obras não existeria Moçambicanidade. No contexto de Malangatana é quase óbvio que ele fez parte do esforço que a Frelimo fez para criar uma identidade colectiva nos ‘corações e nas mentes’. A pena é que o artista autónomo não tem capital para o marketing desse nível. Uma amiga glocal fez esta observação: “O que falta em Moçambique é Gestão e Capital”. Nós estávamos a falar do estado da cultura em Maputo e no País em geral.
Macciavelli disse que o líder (político) deve sempre pensar pelo menos na possibilidade de guerra. Isto significa que até nos períodos de paz o líder tem de pensar em guerra. Paz é um estado específico de guerra. Guerra é um teatro social e a única ‘profissão’ que realmente pode usar tudo que é humano e não humano para atingir os objectivos. Tudo que tem a ver com a sociedade então devia ser visto no contexto de guerra.
Ter um monopólio de violência num certo local produz paz e ordem. Naturalmente o povo prefere isso do que os rebeldes e gangsters que se iriam aproveitar da situção de instabilidade que um país sem governo produz. Bons exemplos deste processo são Iraque, Egípto, Síria e Ucrânia. Se um poder quer ganhar um local deve mostrar ao povo que é capaz de construir uma sociedade melhor do que o outro poder que se pode chamar insurgente. Este é o problema que os Estados Unidos da América têm em Afganistão e Iraque. O povo prefere os clãs locais e grupos religiosos (às vezes muito fanáticos) para manter a paz e a ordem do que os estrangeiros que falharam de uma maneira absurda.
A imagem projectada no teatro social e a manipulação da opinião popular é importante para transmitir este estado de bem estar às pessoas. Desta maneira um governo cria uma base de confiança e até pode criar ilusões sobre esta situação de bem estar. Falando dos EUA, numa sociedade pós-moderna (ou meta-moderna)a média é instrumental para a política. Um líder que é um bom actor e sabe fazer um bom discurso é o melhor agente de relações públicas para o poder. Vejamos os discursos do Barack Obama. Além deste ponto, deviam saber que a relação entre a indústria de entretenimento e o complexo militar-industrial nos EUA é íntimo e antigo. Não é coincidência que em muitos filmes de Hollywood os militares sempre ganham, a bandeira tem uma presença de pelo menos cinco segundos no filme e os bad guys são extra-terrestres, vendem drogas e armas, vêm do Médio-Oeste, etc. Bruce Wayne é talvez o sonho masculino da sub-consciente da cultura; um rico vaidoso com desordem de várias personalidades que não espera para a lei decidir o que é justo e o que não é. Os EUA são um bom exemplo de instrumentalização das artes para objectivos político-militares. Na minha humilde opinião, o verdadeiro líder político é um artista num teatro social. A modernidade é um palco com sete biliões de actores. Controlar ou gerir a opinião pública é essential para ganhar ‘os corações e as mentes’. Pode-se dizer que a opinião pública é a arma principal do líder político.
No tempo de telecomunicação imediata, riquezas absurdas e probeza incrível, o que nós precisamos não é identidade forçada. O artista talvez seja a voz do povo. Aquilo que não sai no jornal e os grandes peixes não querem ver o artista devia denunciar, se quiser. O facto do artista ser autónomo é uma mensagem ética. A escolha do silêncio contra a política é talvez mais forte nos critérios estéticos mas não nos critérios éticos. E daqui surge a questão da relação específica que os artistas têm com o governo. A imagem que o poder projecta na sociedade não é naturalmente a verdadeira ou ideal para o povo. O artista é o vigilante dessa identidade projectada e projecta a sua própria. Os seus objectivos nos contextos da ética e da economia são os do povo, certo?
Desde a minha estadia em Maputo até o momento já la vão doze meses, cheguei à conclusão que criticar o poder não é aconselhável para um cidadão. As pessoas têm medo de exprimir as suas opiniões pessoais. Aquelas que o fazem tem coragem ou uma posição social que lhes permite essas expressões. Tive impressão que muitos artistas fazem o que devem para vender as obras e ser crítico geralmente não é muito importante. E talvez com razão; será que não prestar atenção é o comentário mais forte de todos? A outra opção é com os meios da arte ajudar a revolução que está surgir mundialmente. Este processo ultrapassa todas as questões nacionais, ele tem a ver com o que significa o ser humano.
Hoje em dia há muitos artistas que fazem projectos sociais que exploram comunidades alternativas. Construir um pais com uma ética e estética especificas é uma obra de arte num nível macro. Nós precisamos do conhecimento, a experiência, os meios e o poder do nosso governo para conseguirmos melhorar esta obra chamada Sociedade Moçambicana.
Jorge Fernandes 2014 ©