Jorge Fernandes

Quem tem medo do futuro? – pintura

INT.DIA – CAFÉ

FADE IN DO PRETO

Num café com vista para a esquina entre Julius Nyerere e 24 de Julho dois cavalheiros sentam-se à mesa. Chamam-se Ndambi e Jorge, estão a tomar um café.

Ndambi

Há demais, tenho uma sensação que me incômoda quando olho para sua pintura.

Jorge

Sim, ouvi esse comentário antes, que é exagerado.

Ndambi

Sim, por isso que não é arte real. Espero que não te sentes ofendido.

Jorge

Isso é engraçado.

Ndambi

Mas não estou a brincar.

Jorge

Então, por favor, elabore, é muito fácil simplesmente descartár-lhe. Há pessoas que apenas gostam de provocar dizendo exatamente isso: que meu trabalho não é arte de verdade. Gostaria de te levar a sério, por isso então, por favor, me diga por quê.

Ndambi

Bem, há muita informação na tela. Tu sobrecarregas o espectador com um cenário complexo e muitos detalhes até o ponto que acabas apenas confundar o espectador. A arte é simples, profunda, o espectador tem que sentir a obra de arte. Essa peça me dá a sensação de estar numa aula.

Jorge

Não era minha intenção fazer uma peça simples, não queria reduzir nada. Estás certo sobre haver muita informação, mas, novamente, essa é uma das caracteristicas da peça.

Ndambi

Mas essa é uma maneira ultrapassada de pintar. Aqui tentas contar uma história de várias camadas numa imagem, não achas que está exagerado? Parece pinturas de igreja antigas. Queres fazer referência a isso?

Jorge

Sim, e a peça sugere muitas outras coisas além da pintura clássica européia.

Ndambi

Mas por que queres ficar preso lá, no passado, do outro lado do mundo?

Jorge

Novamente, isso é engraçado.

Ndambi

Pintar é muito mais do que copiar uma fotografia Jorge. Depois de tudo que aconteceu no século passado, não pareces estar interessado em nada disso.

Jorge

Podes ser mais específico?

Ndambi

Realismo já não é arte.

Jorge

Entendo.

Vou ser muito franco e direto com tigo, por favor, não se sinta insultado. Aprecio um debate feroz.

Este é o século XXI, os tempos mudaram. Era uma tendência artística típica do século passado falar, assim como a política, uma linguagem de conquista. Muitos movimentos no mundo da arte ocidental eram um tanto militantes na busca de monopolizar a arte. Uma estética para governá-los todos, uma para encontrá-los e uma estética dentro do mundo da arte para vinculá-los. Parece messiânico para mim, trazer um conceito superior à manifestação para os outros assimilarem. É típico daquela cultura daquela época, eles realmente dominaram o mundo por um tempo né?

Ndambi

Certo! Então, por que copiar a estética dos opressores?

Jorge

Para torná-lo meu, roubá-lo deles e possuí-lo.

Ndambi

.. prossiga.

Jorge

Um artista tem que ser direcionado ao futuro. Olhas para trás tentando aprender com os mestres, mas caminhas em direção ao futuro. Já chega de monocromos, objetos primários ou esculturas desconstrucionistas.

Esta peça é feita em tempos pré-pandemicos. Foi concluído um ano antes de o mundo mudar drasticamente, pois estamos falando que a mudança ainda está a caminho. Se realmente houver uma redefinição da economia para a emancipação, nosso sonho coletivo se concretizará. Mais provável é mais dominação e controle, isso era previsível, não?

Ndambi

Sim, eu entendo, mas..

Jorge

.. Espera.

Ao olhar para o futuro há um tema óbvio, a ampliação e aceleração dos tecno-humanos, os ciborgues. Deve-se reagir a isso, estrategicamente, não apenas seguir o fluxo sem razão. Lex Fridman está certo em sempre falar sobre amor. Esta pintura não seria possível sem acesso à internet ou acrílico, e tenho ouvido os podcasts de IA e muitos outros enquanto estava a pintar esta peça. Acredito que os pintores de tempos antigos adorariam ter essas ferramentas. Um software como o Photoshop, ou melhor, o GIMP, é baseado na fotografia, claro, que por sua vez é baseada no olho, desenvolvida através da arte e da engenharia. São extensões do nosso corpo anatômico que são frescas, têm pouco ou nenhum precedente histórico. Há tanto para explorar! As pessoas estão muito mais educadas do que nunca, isso dá novas possibilidades artísticas. É por isso que você perguntou se eles entenderiam, porque não estás ciente do que aconteceu, e ainda está. O mundo inteiro conhece a História da Arte agora.

Tems que dar o próximo passo.

Ndambi

Não achas o que tu fazes pintura desatualizada?

Jorge

O que está ultrapassado é reduzir a arte a zero. Pessoalmente, espero muito mais de um artista do que apenas o mínimo. Já vi muitas telas que são apenas coloridas, essa aventura não me interessa. O que não significa que não existam pintores abstratos contemporâneos interessantes, existem, o que só torna tudo mais interessante. Mas essa simplesmente não é a minha forma de expressão.

Já é uma fórmula: misturar os vários estilos, experimentos artísticos, maneirismo e o que não numa pintura e tadaá. Entendi. A tela como uma superfície, um lugar de ação, colagem, escolhe. Isso não me motiva.

Ndambi

Então pões de lado a pintura moderna?

Jorge

Não sou modernista, embora seja muito inspirado pelos surrealistas.

Ndambi

Ah, mas..

Jorge

.. A estilização e a abstração são interessantes, mas também desatualizadas. Se jogarmos esse jogo acabamos produzindo nada, porque tudo já foi dito e feito, né? Na arte somos livres. É tolice que eles se limitem porque alguém usou a mesma técnica alguns séculos antes. Isso é ficar preso. Isso seria aceitar as sombras históricas que regulam meu trabalho. Por que isso é tão relevante para si?

Ndambi

Isso é importante na arte, tems que estar atento a essas coisas.

Jorge

Nesse caso, devo falar mais sobre esta pintura em questão.

Ndambi

OK.

Jorge

Nos oito anos em que voltei a viver em Maputo, fiz uma série de pinturas sobre a cidade de Maputo. Não tenho certeza do número, mas conta mais de quinze. A obra em questão é feita no final desta série, quando eu estava refletindo sobre o que tenho feito.

Ndambi

Então, esta é uma pintura sobre sua série de pinturas?

Jorge

Sim. Num sentido mais amplo, trata-se da palavra “performance”. As três figuras principais representam três formas de interpretação.

Do lado direito vemos o Atlas de 2019, o andróide feito pela Boston Dynamics. A palavra desempenho, performance, refere-se a quão bem uma atividade específica é realizada. Um carro tem melhor desempenho se for mais rápido, assim como um atleta também. Isso é desempenho mensurável, que pode falhar ou ter sucesso em diferentes gradações. Atlas imita os humanos até o ponto em que é ainda mais capaz fisicamente do que muitos humanos contemporâneos. Esse andróide é mais atlético, ágil e forte do que a maioria dos humanos, portanto, tem um desempenho melhor. Ainda é uma peça de engenharia feita por humanos, mas agora essa engenharia supera nossas capacidades anatômicas com um desempenho.

A figura do lado esquerdo, a senhora, usa uma máscara. Esse é o rosto de Marina Abramovich, você a conhece?

Ndambi

Talvez, o nome dela seja familiar.

Jorge

Ela deveria ser, eu a considero uma das grandes artistas do século XX, ela ainda está viva. Ela se proclama a avó da Performance Art.

Ndambi

Ah sim, eu sei sobre ela.

Jorge

Esse tipo de performance é meio teatral, de certa forma, mas voltada para o Cubo Branco, galerias, museus, está sempre relacionado a um público. Nesse sentido trata-se da relação psico-social entre produtores e receptores da obra de arte. Não é quantificável como o desempenho do Atlas, é sócio-estético, intelectual-emocional. A forma de medir esse tipo de desempenho é através da experiência de outro humano, e as interpretações de seus significados são potencialmente infinitas. Opõe-se diretamente ao Atlas suas ações finitas, mas muito precisas, que são pré-programadas por uma equipe de engenheiros PHD com uma infraestrutura industrial altamente avançada.

Ndambi

Ok, isso é claro, mas ..

Jorge

..Espera!

Há também a figura central, que é baseado numa foto do Fon de Bamungo daquela época, na África Ocidental. Substituí a cabeça por uma máscara de um filme de Stanley Kubrick.

Ndambi

Então, você não inventou essa máscara?

Jorge

Não, é do filme ‘De olhos bem fechados’, a cena na mansão. Quando o personagem principal é pego e obrigado a tirar a máscara, lembras aquela festa maluca?

Ndambi

Sim.

Jorge

Vemos algumas fotos de convidados mascarados, uma delas é a que usei. Pensei nisso como uma máscara cubista. Depois de uma pesquisa na internet, descobri que é uma máscara feita por um fabricante de máscaras veneziano. Não sei como se chama isso. Kubrick usou no filme ao lado de muitos outros, claro. Mas a máscara cubista ficou na minha cabeça, também porque já vi o filme muitas vezes, adoro Kubrick. Outro grande do século anterior.

Ndambi

Mas, sabes o que isso significa, em relação à arte africana?

Jorge

É uma provocação realmente, mas não o que talvez pensas. Tento apontar para uma tendência dos artistas em Maputo de considerar a estilização no desenho como a verdadeira forma africana de pintar. É uma crítica que recebo com frequência, que meu trabalho não é realmente africano.

Ndambi

Como reages a isso?

Jorge

Bem, nasci aqui, moro e trabalho aqui, faço trabalho sobre Maputo, Moçambique e Africa. É impossível para mim não ser africano. Representar um continente, uma etnia ou ideologia não me interessa. O que eu tentei fazer aqui é lhe complicar.

Ndambi

Então essa máscara é uma mensagem?

Jorge

Faz parte do traje padrão de um xamã, ou neste caso, uma espécie de xamã-rei. As máscaras são um tema central na arte africana. Minha versão do rei xamã usa uma máscara cubista veneziana. Já viste os sapatos dele?

Ndambi

O que dizer disso?

Jorge

Eles estão muito acima do meu orçamento.

Ndambi

Isso é uma corrente de ouro?

Jorge

É um trono de ouro também, mas só é visível de ângulos específicos onde a tinta dourada reflete a luz.

Ndambi

Não vi isso.

Jorge

Você vai ver na próxima vez.

Mas deixe-me voltar ao tema central da pintura. A figura central representa a forma ritualística de atuação, inserida na ordem social. A palavra em si pode nem se aplicar a ela, já que o contexto das belas artes não é aplicável a muita cultura tradicional africana. A ferramenta nas suas mãos é de afastar os espíritos negativos e as energias sujas. O objeto implica uma atuação no mundo físico e espiritual simultaneamente, sob o olhar dos ancestrais. O rei-xamã desempenha uma função para seu povo, de negociação político-social com as forças superiores e outras entidades da realidade física e além.

Ndambi

Entendo, a pintura é um estudo de performance.

Jorge

E também uma reflexão crítica sobre minha série de pinturas dos últimos anos.

Ndambi

Achas que o espectador vai entender tudo isso?

Jorge

Claro!

Ndambi

Quão? Você vai ter que falar muito.

Jorge

Gosto de conversar com as pessoas, é uma das grandes alegrias de ser artista, será meu prazer.

Ndambi

Então, explique melhor.

Jorge

Até agora falamos apenas do primeiro plano do espaço pictórico. Existe a ilusão de espaço à qual você parece se opor.

Ndambi

Não é uma pintura real, finge ser outra coisa. É uma dica pretensiosa do conceito de portas interdimensionais, apenas ficção científica barata.

Jorge

É uma pintura real que cria a ilusão de espaço, não é falsa e definitivamente não é superficial. Eu diria que visualmente tenta criar um espaço infinito, pois vemos o céu e vemos estrelas ao fundo. Essas ilhas são mais do que apenas terra, espero que apanhas. Ao fundo, no céu, vemos o que considero a Aurora Austral. Há coisas escondidas no fundo que contribuem ao tema do rei.

Ndambi

Estás a falar de aqueles dois guardas? Os espíritos que seguram os dois cajados?

Jorge

Não, eles podem ser considerados como estando em primeiro plano.

Ndambi

Espere, entendo que a pintura é uma espécie de ópera.

Jorge

Sim.

Ndambi

Mas voltemos à perspectiva da história da arte. Não me convenceu que esse estilo de pintura é válido como arte.

Jorge

Eu realmente vejo uma tendência na modernidade de limitar a arte à expressão emocional que apoia os ideais de alguém. É uma armadilha.

Ndambi

Es parecido a um realista soviético, usando a arte para fins educacionais.

Jorge

Isso te incomoda?

Ndambi

Não, é diferente. Eu não gosto disso, mas a sensação de desconforto no meu estômago se foi. Eu entendo agora, seu trabalho é original, mas muita explicação, eehhh.

Jorge

Ah! Espera alguns anos.

A propósito:

Há uma referência histórica da arte que talvez vais gostar. Os regionalistas americanos da década de 1930 são um pouco semelhantes a mim. Eles retratavam cenas das pessoas de seu ambiente.

Ndambi

Então, você é um surrealista regionalista.

Jorge

Isso é uma boca cheia.

Ndambi

Por que fizeste essa pintura?

Jorge

De onde viemos, o que somos, para onde vamos’?

DESVANACER PARA A ESCURIDÃO TOTAL